Em um mundo cada vez mais consciente da urgência climática e da necessidade de transição para fontes energéticas mais limpas, o biogás emerge como um protagonista silencioso, mas de potencial transformador. Longe de ser apenas uma alternativa energética, representa uma verdadeira revolução sustentável, capaz de converter um problema ambiental – o acúmulo de resíduos orgânicos – em uma solução ecológica e economicamente viável. Ao transformar matéria orgânica em decomposição em energia renovável, o biogás não só diversifica a matriz energética, mas também oferece um caminho robusto para a descarbonização, a economia circular e a segurança energética, especialmente para um país com a vocação agrícola e a extensão territorial do Brasil.
A Associação Brasileira do Biogás (Abiogás) define essa fonte como mais do que uma alternativa, mas uma “revolução sustentável que transforma desafios ambientais em oportunidades ecológicas”. A lógica é clara: resíduos que, de outra forma, poluiriam o solo, a água e a atmosfera (principalmente pela emissão de metano, um gás de efeito estufa muito mais potente que o CO2 no curto prazo) são capturados e processados através da digestão anaeróbia. Nesse processo, microorganismos decompõem a matéria orgânica na ausência de oxigênio, gerando dois produtos principais: o biogás, uma mistura gasosa rica em metano (CH4) e dióxido de carbono (CO2), e o digestato, um fertilizante orgânico rico em nutrientes.
O potencial brasileiro para a produção de biogás é colossal, refletindo a força do seu agronegócio e os desafios da gestão de resíduos urbanos. Dados compilados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) em seu estudo “Potencial Técnico do Biogás de Resíduos” e informações da Abiogás pintam um quadro impressionante. A EPE estima que, até 2031, o potencial técnico energético do biogás de resíduos no Brasil possa superar os 80 milhões de toneladas equivalentes de petróleo (Mtep), o que equivaleria a cerca de 25% da demanda energética nacional projetada para o período, caso todo esse potencial fosse economicamente viável. Convertido em eletricidade, esse volume representaria mais de 20% da geração elétrica total do país, ou quase a totalidade do consumo residencial de eletricidade projetado para 2031.
Os números setoriais apresentados pela Abiogás reforçam essa magnitude. A associação calcula que o potencial do biogás poderia suprir 31,8% do consumo total de energia elétrica do Brasil ou 61,9% da demanda nacional por diesel, o equivalente a mais de 111 milhões de litros por dia. Tal capacidade, segundo a Abiogás, poderia substituir toda a importação brasileira de combustíveis fósseis como gás de cozinha (GLP), gás natural e diesel, além de ter um potencial cinco vezes maior que a demanda nacional por combustível de aviação (Abiogás, s.d.). A EPE complementa, indicando que o potencial técnico total de metano (o principal componente energético do biogás) a partir de resíduos foi estimado em 78,7 bilhões de metros cúbicos normais (GNm³) em 2021, com projeção de alcançar 97,9 GNm³ em 2031, impulsionado principalmente pelo crescimento esperado na disponibilidade de resíduos agrícolas.
Essa abundância de recursos provém de diversas fontes. A EPE classifica os resíduos em grupos de acordo com a facilidade de coleta e biodigestão. O Grupo 1, considerado o de maior facilidade, inclui resíduos sólidos urbanos (RSU), dejetos da suinocultura e da avicultura, onde a concentração dos resíduos facilita o processo. O Grupo 2 abrange os dejetos da pecuária bovina (leite e corte), cujo manejo em confinamento ou semiconfinamento também simplifica a coleta. Já o Grupo 3, com maior potencial em volume, mas que exige logística mais complexa de coleta e pré-processamento, é composto pelos resíduos da agricultura (como palhas e restos de culturas como algodão, arroz, feijão, mandioca, milho, soja e trigo – excluindo a cana-de-açúcar nesta análise específica da EPE). Em 2031, a agricultura sozinha responderá pela maior parte do potencial (cerca de 77%), seguida pelo Grupo 1 (14,6%) e Grupo 2 (8%) (EPE, 2023).
O Papel Crucial do Biometano na Transição Energética
Dentro do universo do biogás, o biometano merece destaque especial. Trata-se do biogás purificado, do qual foram removidos o CO2 e outros gases traço, resultando em um gás com altíssima concentração de metano (geralmente acima de 90%), com características físico-químicas muito similares às do gás natural de origem fóssil. Essa similaridade permite que o biometano seja injetado diretamente na rede de gasodutos existente ou utilizado como combustível veicular (Gás Natural Veicular – GNV), substituindo diesel, gasolina e gás natural fóssil sem necessidade de adaptações significativas nos motores ou na infraestrutura.
A Abiogás ressalta um benefício fundamental do biometano: a neutralização das emissões de metano na atmosfera. Ao capturar o metano que seria naturalmente liberado pela decomposição de resíduos, evita-se a emissão de um potente gás de efeito estufa. Além disso, ao substituir combustíveis fósseis, o biometano promove uma dupla descarbonização: reduz as emissões de CO2 na ponta do consumo (por exemplo, nos escapamentos dos veículos) e evita as emissões de metano na origem (nos aterros, lagoas de dejetos, etc.). A EPE calcula que o potencial técnico de metano a partir de resíduos no Brasil, se convertido em biometano, poderia suprir cerca de 80% da demanda de energia do setor de transportes em 2031.
Essa capacidade de substituir combustíveis fósseis em setores de difícil abatimento de emissões, como o transporte pesado de cargas e passageiros, e atividades agrícolas e industriais que dependem de gás natural, posiciona o biometano como um vetor energético estratégico para a transição energética brasileira. Ele oferece uma solução renovável, produzida localmente a partir de recursos nacionais, diminuindo a dependência de importações e a volatilidade dos preços internacionais de energia.
Sustentabilidade e Economia Circular: O Ciclo Virtuoso do Biogás
O biogás é um exemplo emblemático de economia circular na prática. Ele transforma um passivo ambiental (resíduos) em múltiplos ativos: energia renovável (biogás/biometano) e um biofertilizante de alta qualidade (digestato). Esse ciclo virtuoso não apenas gera valor econômico, mas também traz inúmeros benefícios ambientais e sociais.
Primeiramente, a produção de biogás oferece uma solução sustentável para a gestão de resíduos orgânicos, um dos grandes desafios urbanos e rurais. No campo, evita a contaminação do solo e da água por dejetos animais e restos de culturas. Nas cidades, reduz a quantidade de lixo enviada a aterros sanitários, diminuindo a pressão sobre esses locais, prolongando sua vida útil e, crucialmente, capturando o metano que seria emitido, contribuindo para as metas climáticas. A EPE destaca que o manejo adequado dos resíduos da pecuária confinada é essencial para prevenir a contaminação ambiental devido à alta carga orgânica, e a biodigestão é uma ferramenta chave nesse processo.
Em segundo lugar, o digestato, subproduto da digestão anaeróbia, é um fertilizante orgânico rico em nitrogênio, fósforo, potássio e micronutrientes essenciais para as plantas. Sua aplicação no solo melhora a sua estrutura e fertilidade, reduzindo a necessidade de fertilizantes químicos sintéticos, cuja produção é intensiva em energia e muitas vezes dependente de importações. Isso não só diminui os custos para os agricultores, mas também reduz a pegada de carbono da agricultura e contribui para a saúde do solo a longo prazo. A EPE menciona a devolução dos nutrientes contidos nos resíduos às pastagens cultivadas para silagem através do digestato.
Terceiro, a geração de energia a partir do biogás é descentralizada, ocorrendo próxima às fontes de resíduos e, muitas vezes, próxima aos centros de consumo. Isso reduz as perdas na transmissão e distribuição de energia, aumenta a resiliência do sistema elétrico e promove o desenvolvimento econômico em regiões do interior, onde a atividade agropecuária é predominante. A Abiogás enfatiza a capacidade do biogás de interiorizar o mercado de gás e impulsionar o desenvolvimento regional.
Impulsionando a Descarbonização e a Neoindustrialização Verde
O potencial de descarbonização do biogás é significativo. A Abiogás estima que ele pode reduzir as emissões em cerca de 90% em comparação com os combustíveis fósseis que substitui. Essa capacidade é vital para que o Brasil cumpra seus compromissos climáticos no âmbito do Acordo de Paris e avance em direção a uma economia de baixo carbono.
A contribuição do biogás se estende por múltiplos setores. Na agricultura e pecuária, além de tratar os dejetos e gerar biofertilizantes, fornece energia para as próprias fazendas, reduzindo custos e emissões. Na indústria, pode substituir o gás natural ou o óleo combustível em processos que demandam calor, como secagem, aquecimento de caldeiras e fornos. No setor de transportes, o biometano é uma alternativa imediata e eficaz para descarbonizar frotas de ônibus, caminhões e máquinas agrícolas.
Além disso, o desenvolvimento da cadeia produtiva do biogás representa uma oportunidade para a chamada “neoindustrialização verde”. A fabricação de equipamentos (biodigestores, purificadores, geradores), a prestação de serviços de engenharia, instalação, operação e manutenção, e a logística associada geram empregos qualificados e promovem a inovação tecnológica no país. A Abiogás (s.d.) projeta a geração de até 798 mil empregos verdes e investimentos que podem chegar a R$ 120 bilhões com o desenvolvimento pleno do setor.
Contexto Global e Desafios Nacionais
O Brasil não está sozinho na exploração do potencial do biogás. A Associação Mundial do Biogás (WBA), citada pela EPE, estima que o potencial técnico global esteja entre 868 e 1.204 Mtep por ano, o que representaria de 6% a 9% da demanda mundial de energia primária. No entanto, a WBA também aponta que apenas uma pequena fração desse potencial (entre 1,6% e 2,2%) é atualmente aproveitada comercialmente em nível global. O Brasil, com seu vasto potencial estimado pela EPE e Abiogás, tem a chance de se tornar um líder mundial nesse setor, mas ainda aproveita uma parcela muito pequena de seus recursos.
Para destravar esse potencial, alguns desafios precisam ser superados. A viabilidade econômica dos projetos, especialmente os de menor escala, ainda depende de fatores como o preço da energia substituída, o custo dos equipamentos, o acesso a financiamento e a existência de políticas públicas de incentivo. A logística de coleta e transporte de resíduos, principalmente os agrícolas (Grupo 3 da EPE), pode ser complexa e custosa. A falta de informação e conhecimento técnico por parte de potenciais produtores e investidores também pode ser uma barreira.
Políticas públicas consistentes e de longo prazo são fundamentais. Isso inclui marcos regulatórios claros, incentivos fiscais, linhas de crédito específicas, programas de apoio à pesquisa e desenvolvimento, e mecanismos que garantam a remuneração adequada pela energia gerada e pelos benefícios ambientais proporcionados (como a precificação do carbono ou certificados de energia renovável).
Um Futuro Energizado por Resíduos
O biogás representa muito mais do que uma simples fonte de energia. É uma ferramenta poderosa para a gestão sustentável de resíduos, um motor para a economia circular, um pilar para a segurança energética e um aliado crucial na luta contra as mudanças climáticas. O Brasil detém um dos maiores potenciais de biogás do mundo, uma riqueza que brota literalmente do lixo e dos subprodutos do seu pujante agronegócio.
Transformar esse potencial em realidade exige um esforço conjunto de governos, iniciativa privada, academia e sociedade civil. Investir em biogás é investir em autossuficiência energética, em desenvolvimento regional, em empregos verdes, em ar mais limpo e em um futuro mais sustentável para todos os brasileiros. A revolução silenciosa do biogás está em curso, e o Brasil tem a oportunidade única de liderar esse movimento, colhendo os frutos ambientais, sociais e econômicos de transformar resíduos em riqueza.
Empresas Liderando a Transformação
O potencial teórico do biogás e do biometano no Brasil já se traduz em iniciativas concretas que demonstram a viabilidade e os benefícios dessa fonte energética. Empresas como a Eva Energia e a Gás Verde, ambas parte do Grupo Urca Energia, exemplificam como os resíduos podem ser convertidos em soluções energéticas sustentáveis em larga escala.
A Eva Energia atua fortemente na geração distribuída de eletricidade a partir do biogás. Um exemplo notável é sua operação em aterros sanitários, como o de Seropédica (RJ), considerado o maior da América Latina. Lá, a empresa utiliza o biogás gerado pela decomposição do lixo para alimentar usinas termelétricas, fornecendo energia renovável para consumidores através de contratos de geração distribuída. Esse modelo não só oferece uma alternativa energética mais econômica e sustentável para os clientes, mas também contribui diretamente para a redução das emissões de metano do aterro, promovendo a economia circular e a gestão ambiental adequada dos resíduos urbanos. A empresa também explora o potencial do biogás proveniente da suinocultura, diversificando suas fontes de matéria-prima.
Já a Gás Verde se consolidou como a maior produtora de biometano da América Latina, focando na purificação do biogás de aterros para produzir um combustível renovável idêntico ao gás natural. A empresa tem firmado parcerias estratégicas para impulsionar a descarbonização de diversos setores. Acordos com grandes indústrias, como a Henkel, preveem o fornecimento de milhões de metros cúbicos de biometano anualmente para substituir o gás natural fóssil em processos fabris. No setor de transportes, a Gás Verde colabora com empresas como a L’Oréal para abastecer frotas de caminhões com biometano, reduzindo significativamente as emissões da logística. Além disso, a empresa estabeleceu parcerias para a injeção do seu biometano diretamente na rede de gasodutos de transporte, como o acordo com a NTS (Nova Transportadora do Sudeste), permitindo que o gás renovável alcance um número ainda maior de consumidores industriais e residenciais, demonstrando a capacidade do biometano de se integrar à infraestrutura energética existente e acelerar a transição para uma matriz mais limpa.
Esses exemplos ilustram como o investimento em tecnologia e modelos de negócio inovadores pode transformar o potencial do biogás e do biometano em realidade, gerando valor econômico, social e ambiental para o Brasil.