A expansão da matriz de energia renovável no Brasil — com forte crescimento de fontes intermitentes como solar e eólica, além da geração distribuída — exige não só a construção de novos empreendimentos de geração, mas também uma robusta infraestrutura de transmissão. Isso significa leilões bem desenhados, processos de concessão claros, prazos de outorga definidos e modelos de financiamento que dêem segurança ao investidor. Aqui, analisamos o cenário atual, os desafios regulatórios, os editais mais recentes e as implicações estratégicas para o setor.
Panorama Regulatório e Editais Recentes
A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) têm listado leilões de transmissão entre suas prioridades, reconhecendo que sem adequada capacidade de escoamento, projetos renováveis ficam subutilizados ou até inviáveis.
- Recentemente, o Edital do Leilão de Transmissão nº 01/2026 ‒ ANEEL foi objeto de consulta pública nº 028/2025, com previsão de R$ 3,31 bilhões em investimentos. Esse leilão tem previsão de acontecer em 27 de março de 2026, vinculando obras de transmissão (novas linhas, seccionamentos), subestações e modernizações.
- Outro edital em consulta pública destina-se à construção e manutenção de cerca de 1.178 km de linhas de transmissão novas, com capacidade de transformação de 4.400 MVA, além de seccionamentos, compensações síncronas e controle automático de reativos. Os empreendimentos atravessarão 13 estados, indo de Goiás ao Rio Grande do Norte, Rondônia, São Paulo, entre outros.
- Há ainda lotes particularmente vultosos, como o lote 4 do edital recente para transmissão, com estimativa superior a R$ 1,25 bilhão, visando especialmente a subestação 500/230 kV Vilhena 3, em Mato Grosso/Rondônia, para reforço do subsistema Acre-Rondônia.
Essas iniciativas demonstram o reconhecimento institucional da necessidade de expandir e modernizar a rede de transmissão para garantir suprimento seguro, redução de perdas técnicas e operacionais, bem como integração eficaz das novas fontes limpas de geração.
Desafios que Persistem
Embora haja editais robustos que sinalizam avanço, uma série de desafios regulatórios, operacionais e de financiamento precisam ser superados para garantir que os leilões de transmissão cumpram sua função estratégica.
- Prazos de Outorga e Vigência de Contratos
A outorga é o momento em que o poder concedente (União via ANEEL) autoriza formalmente que a transmissora execute e opere os ativos de transmissão. Editais recentes preveem prazos específicos, mas existe pressão do setor para maior estabilidade. Mudanças regulatórias ou atrasos nos processos decisórios (licenças, meio ambiente, desapropriações) podem atrasar a viabilização dos projetos.Um exemplo: a ANEEL aprovou a extensão do prazo de outorga de oito usinas vencedoras do Mecanismo Concorrencial Centralizado em até sete anos, conforme diretrizes da Portaria MME nº 112/2025, com o objetivo de liberar valores represados. - Regulação e Critérios Técnicos
São constantes os debates sobre os parâmetros de avaliação: Receita Anual Permitida (RAP), garantias, critérios de penalidade e parâmetros de desempenho. A RAP máxima é base de referência nos leilões de transmissão, e deságios sobre esse teto determinam vencedores.Também há discussão sobre aspectos como reativos, compensações síncronas, qualidade de serviço, padronização de protocolos e requisitos técnicos de conexão e operação (ex: obrigações com o ONS, com o CPST, e contratos de conexão CCT). - Financiamento dos Projetos
Transmissão é um segmento de investimento intensivo, com CAPEX elevado, prazos longos de retorno e riscos regulatórios ou de implementação que elevam o custo do capital. Estruturas financeiras viáveis dependem de segurança jurídica, previsibilidade nos editais, contratos de concessão estáveis, garantias e, em alguns casos, participação de financiadores públicos ou multilaterais.Além disso, os lotes grandes (milhares de quilômetros ou subestações de alta tensão) precisam de financiamento robusto, que leve em conta prazos de construção, riscos ambientais e de desapropriação, bem como riscos operacionais futuros. - Superação de Barreiras Ambientais, Sociais e de Licenciamento
Obras de transmissão frequentemente cruzam áreas extensas, exigindo licenças ambientais, regularização fundiária, diálogo com comunidades, além de licenciamento federal, estadual e municipal. A morosidade desses processos pode atrasar significativamente a entrega. - Integração com Geração Renovável e Geração Distribuída
A capacidade de transportar energia dos polos geradores — às vezes localizados em regiões remotas ou com menor densidade populacional — até centros de consumo ou redes principais depende de uma transmissão bem dimensionada. Sem isso, há possíveis gargalos, saturação de linhas existentes, perdas e até descartes de potência renovável.A geração distribuída (GD) também impõe desafios na rede de média e baixa tensão, que, embora não seja diretamente responsabilidade do leilão de transmissão, depende da coordenação entre transmissão e distribuição, bem como da regulação de convênios, de custos de conexão e de tarifas de uso de sistema.
Implicações Estratégicas e Oportunidades
Diante desse cenário, as empresas, agentes regulatórios e investidores podem identificar várias frentes de ação e oportunidades:
- Participar ativa e antecipadamente das consultas públicas (ex: edital 01/2026, consulta nº 028/2025) para influenciar critérios técnicos e regulatórios. Saber desde já os requerimentos de transformação, parâmetros de reativos, padrões de entrada, garantias etc.
- Desenvolver capacidades internas em engenharia, licenciamento, análise regulatória e gestão de contratos, para responder às exigências do edital, cumprir prazos e mitigar riscos.
- Estruturar parcerias com financiadores locais ou internacionais, inclusive usando instrumentos de mitigação como garantias infra-estruturais ou seguros regulatórios, para reduzir o custo de capital e aumentar a atratividade dos projetos.
- Inovar na operação e manutenção, visto que a longevidade dos ativos de transmissão exige alta confiabilidade. Tecnologias de monitoramento remoto, automação, digitalização, sensores e diagnóstico preditivo são diferenciais.
- Advogar por estabilidade regulatória, transparência e previsibilidade jurídica. Mudanças súbitas de regras ou interpretação podem aumentar os riscos percebidos e elevar os prêmios de risco exigidos pelos investidores.
Conclusão
Os leilões de transmissão e concessões são absolutamente centrais para garantir que o Brasil aproveite todo o seu potencial renovável, sem enfrentar gargalos de transmissão, perdas elevadas ou insegurança operacional. Embora haja iniciativas recentes e editais promissores, os desafios persistem — prazos, regulação técnica, licenciamento, financiamento, e integração com geração renovável distribuída.
Para o setor avançar de forma estratégica, sustentável e transparente, é essencial que empresas, reguladores e investidores trabalhem em conjunto. Somente assim será possível construir uma rede de transmissão robusta, moderna, confiável — que não seja um gargalo para a transição energética, mas sim uma alavanca de competitividade, resiliência e valor compartilhado.