O Brasil se encontra em uma encruzilhada no setor energético: há um vigoroso movimento para que o país se torne protagonista na cadeia do hidrogênio de baixíssimo carbono — ou “verde” —, mas a concretização de projetos em escala ainda esbarra em desafios tecnológicos, regulatórios e financeiros. Com mais de 70 iniciativas em fase de pré-viabilidade, conforme levantamento recente, o país detém enorme potencial, porém a transição da promessa para a execução ainda requer o desatar de vários nós.
O cenário em linhas gerais
O chamado hidrogênio verde (H₂V) refere-se ao hidrogênio produzido a partir de fontes renováveis — por exemplo, via eletrólise da água alimentada por energia solar e eólica — e, portanto, com emissões substancialmente mais baixas que o hidrogênio convencional. No Brasil, esse conceito ganhou tração em razão de uma combinação de fatores favoráveis: matriz elétrica renovável majoritária, recursos abundantes de vento e sol, e localização estratégica para exportação.
Segundo levantamento da agência Argus, o Brasil soma mais de 70 projetos em diferentes estágios de desenvolvimento — ainda que muitos sejam estudos ou memorandos de entendimento, e não plantas operacionais. Em paralelo, o governo federal lançou a Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão e o programa Programa Nacional de Hidrogênio (PNH₂), com a meta de estruturar ambiente institucional, técnico e de incentivos.
Contudo, apesar dos anúncios e expectativas elevadas, até o momento o Brasil ainda não conta com uma planta de hidrogênio verde em escala comercial plenamente operacional. E esse “gap entre promessa e execução” reflete justamente os gargalos que permeiam todo o ecossistema.
Desafios tecnológicos e de infraestrutura
Mesmo com uma matriz bastante favorável, o Brasil deve superar uma série de entraves técnicos para viabilizar o H₂V com competitividade global. Destacam-se:
- Custo da eletrólise e cadeia de suprimentos: A tecnologia de eletrólise ainda representa parcela relevante do CAPEX em um projeto de H₂V, assim como a necessidade de equipamentos especializados (como eletrolisadores, compressores, tanques de estocagem). O Brasil importa grande parte desses componentes, o que encarece a operação.
- Rede elétrica e integração renovável: Apesar de muitos parques eólicos e solares, há desafios para garantir que a energia renovável efetivamente alimente os eletrolisadores de forma contínua e econômica. Curta-quedas, falta de transmissão adequada e a necessidade de arranjos de PPA (power purchase agreement) específicos são exemplos.
- Transporte, estocagem e logística do hidrogênio: O Brasil ainda carece de uma infraestrutura madura para transporte (por gasodutos ou navios), armazenamento em grande escala ou conversão em derivados (como amônia verde para exportação). Na ausência dessa logística, muitos projetos ficam confinados a estudos de viabilidade.
- Escalonamento e maturidade de mercado: Em termos práticos, ainda não há escala suficiente para industrializar a produção e reduzir custos unitários — o famoso “vale da morte” da tecnologia. Conforme estudo da CEBRI, o Brasil precisa transformar suas vantagens comparativas em competitividade real.
Um exemplo concreto: foi anunciado um projeto de 3 GW de H₂V + amônia no Brasil que recebeu isenção de CAPEX e OPEX para viabilizar a decisão final de investimento. Mas ainda que promissor, isso mostra que o setor depende fortemente de incentivos expressivos.
Desafios regulatórios e de marco institucional
Mesmo diante de uma agenda regulatória mais ativa, o setor de hidrogênio no Brasil enfrenta lacunas e atrasos que comprometem a clareza para investidores, fornecedores de tecnologia e indústria. Entre os principais pontos:
- Em 2 de agosto de 2024, foi aprovada a Lei 14.948/2024, que instituiu o marco legal para o hidrogênio de baixa emissão no Brasil, criando o sistema de certificação brasileiro de hidrogênio (“SBCH”) e atribuindo à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) competência para autorizar, regular e fiscalizar atividades da cadeia.
- Em complemento, a Lei 14.990/2024 instituiu o Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão (PHBC), permitindo a concessão de créditos fiscais para produtores/consumidores entre 2028 e 2032.
- Apesar desses avanços, especialistas apontam que normas secundárias e decretos regulatórios ainda estão em atraso, o que gera insegurança jurídica. Como alerta um artigo da JOTA: “Demora para edição de normas gerais pode resultar em um futuro emaranhado de legislações locais”.
- Ainda, o transporte interestadual, o armazenamento e os critérios de certificação de “baixo-carbono” seguem como temas críticos.
O efeito prático: muitos investidores e fornecedores preferem aguardar a “carta branca” regulatória antes de avançar com dec investimentos. A clareza normativa é condição de maturidade de mercado.
Financiamento e modelo de negócios: o bloco central do entrave
Tecnologia, infraestrutura e regulação juntas ainda demandam volumes de capital elevados — e aqui surgem os gargalos de financiamento e viabilidade econômica:
Em termos globais, os estudos estimam que o Brasil poderia produzir hidrogênio por custos competitivos – ou ao menos próximos – se alcançasse escala, aproveitando energia renovável barata e logística favorável.
- No entanto, a lógica de negócios ainda é incipiente: quem vai demandar o H₂V no Brasil em volumes suficientes? Qual será o preço-referência? Sem contratos de longo prazo ou mercados consolidáveis, o risco para investidores permanece alto.
- Programas de incentivo estão surgindo: por exemplo, o crédito fiscal de até BRL 5 bilhões em 2032 para diferença de preço entre H₂ de baixo carbono e produto substituído.
- O Brasil também anuncia investimentos públicos relevantes — como os R$10 bilhões para o Nordeste com foco em hidrogênio.
- Mas o volume ainda é pequeno frente às dezenas de bilhões que serão necessários para tornar o H₂V competitivo globalmente.
- Um estudo de 2024 conclui que instrumentos como blended finance e “contracts for difference” (CfD) são essenciais para destravar o financiamento no setor.
Pantheon
Ou seja: ainda que exista demanda projetada — por exemplo, siderurgia, fertilizantes, transporte pesado — os contratos, mercados e remunerações que garantam o retorno ainda não estão completamente desenhados.
O que falta para destravar os projetos – e onde estão as oportunidades
Com os desafios bem identificados, vale destacar os elementos que podem funcionar como gatilhos para acelerar a execução dos projetos no Brasil:
1. Escalonar de projeto-piloto para planta de escala comercial
Muitos projetos no Brasil seguem em fase de estudos ou memorandos de entendimento. A materialização de uma planta-piloto ou de referência em escala comercial será o primeiro passo para reduzir riscos percebidos e atrair fornecedores de tecnologia e capital global.
2. Mercado doméstico além da exportação
Enquanto o Brasil foca fortemente na exportação de H₂V e derivados (como amônia verde), a consolidação de demanda interna — por exemplo, para fertilizantes verdes, redução de minério de ferro com hidrogênio, transporte pesado — é igualmente importante para viabilizar escala e reduzir dependência de mercado externo.
3. Instrumentos de suporte econômico-financeiro mais robustos
Os incentivos fiscais já aprovados — como o regime “Rehidro” e os créditos da PHBC — são avanços importantes. Agora, sua implementação, definição de condições, critérios e calendário serão determinantes. Além disso, mecanismos de mitigação de risco (garantias, CfD, seguros tecnológicos) podem ampliar o interesse de investidores institucionais.
4. Integração da cadeia de valor e local content
Para o Brasil se beneficiar plenamente, é preciso desenvolver fornecedores locais de eletrolisadores, componentes de hidrogênio, e logística. Conforme a newsletter da NIRAS observa: “o novo marco legal traz previsibilidade e atratividade, mas ainda será preciso fomentar a indústria de equipamento.” Investir em inovação, capacitação técnica e parcerias internacionais é estratégico.
5. Transparência regulatória e governança do setor
A governança prevista pela PNH₂ e a atuação da ANP como reguladora são avanços claros. Todavia, a edição de decretos, normas e procedimentos operacionais deve avançar com maior agilidade para dar segurança aos agentes. Regionalização (estados, municípios) também não pode gerar dispersão normativa.
Oportunidades reais para indústria, fornecedores e investidores
Para os diferentes públicos — indústria-usuária, fornecedores de tecnologia e investidores — o cenário brasileiro oferece janelas de oportunidade:
- Indústria de base (siderurgia, fertilizantes, químico): Pode se antecipar ao ciclo de vendas do H₂V e estruturar de parcerias ou contratos de fornecimento com produtores de hidrogênio. O foco em setores “difíceis de decarbonizar” coloca o Brasil como plataforma importante para competitividade verde.
- Fornecedores de tecnologia e EPC (engenharia, suprimentos e construção): O grande volume de projetos em fase de pré-viabilidade indica demanda futura por eletrolisadores, compressores, tanques, sistemas de automação. Desenvolver presença local ou parcerias de transferências tecnológicas será uma vantagem competitiva.
- Investidores institucionais e estruturadores de projeto: A combinação de incentivos fiscais, apoio público (como no Nordeste) e perspectivas de exportação fazem do Brasil um alvo atraente. Contudo, o investidor deve avaliar bem os riscos regulatórios, de oferta de energia renovável, e modelos de demanda.
- Governo e estados: A coordenação entre ministérios, agências reguladoras e governos estaduais será essencial. Estados como Ceará já se colocam como hubs potenciais, com apoio do Banco Mundial em estratégias regionais.
Conclusão
O Brasil dispõe de um extraordinário potencial para liderar a produção de hidrogênio verde: recursos renováveis abundantes, localização geográfica estratégica, demanda global crescente e um arcabouço regulatório emergente. No entanto, está longe de “bater o martelo” em plantas de escala comercial. Como destaca o relatório da Argus: apesar do crescimento acelerado, “gargalos na rede elétrica e desafios regulatórios ainda limitam o crescimento do setor”.
O futuro da cadeia do H₂V no Brasil exigirá o alinhamento de quatro vetores: tecnologia e escala, infraestrutura elétrica e logística, regulação e incentivos financeiros, e modelos de negócio claros com escala e contratos de demanda. Se esses vetores forem executados com agilidade e consistência, o país poderá transformar suas vantagens comparativas em competitividade global e efetivar a transição energética que o mundo demanda.
Para a indústria, os fornecedores e os investidores, a mensagem é clara: esse é um momento de oportunidade — mas também de maturidade. É necessário passar da “expectativa” para a “decisão de investimento”. E o relógio está correndo, porque os players globais também aceleram. O Brasil precisa se mover rápido para não ficar para trás.






