Brasil desperdiça potencial energético ao manter resíduos em aterros enquanto outros países transformam lixo em eletricidade

A gestão de resíduos sólidos urbanos (RSU) é um desafio crescente no Brasil, especialmente com o aumento populacional e a urbanização acelerada. Uma solução eficaz para mitigar os impactos ambientais e, simultaneamente, gerar energia é a recuperação energética de resíduos, conhecida como “waste-to-energy” (WTE). No entanto, o Brasil encontra-se significativamente atrasado na adoção dessa tecnologia, especialmente quando comparado a países desenvolvidos.​

O que é a Recuperação Energética de Resíduos?

A recuperação energética de resíduos consiste na conversão de materiais não recicláveis em energia utilizável, seja na forma de eletricidade, calor ou combustíveis. Esse processo é realizado por meio de diversas tecnologias, como incineração com recuperação de energia, gaseificação, pirólise e digestão anaeróbia. Além de reduzir o volume de resíduos destinados a aterros sanitários, essas tecnologias contribuem para a geração de energia limpa, alinhando-se aos princípios da economia circular.​

Importância da Recuperação Energética de Resíduos

  • Redução do Volume de Resíduos: A transformação de resíduos em energia pode diminuir significativamente o volume de lixo destinado a aterros, prolongando a vida útil desses locais e mitigando a necessidade de novas áreas para disposição final.​
  • Geração de Energia Limpa: A recuperação energética contribui para a diversificação da matriz energética, oferecendo uma fonte contínua e previsível de eletricidade e calor, independentemente de condições climáticas.​
  • Mitigação de Gases de Efeito Estufa: Ao evitar a decomposição anaeróbia de resíduos orgânicos em aterros, há uma redução significativa na emissão de metano, um gás com potencial de aquecimento global 25 vezes superior ao dióxido de carbono.​
  • Saneamento Básico e Saúde Pública: A destinação adequada dos resíduos sólidos urbanos previne a contaminação do solo e de corpos hídricos, além de reduzir a proliferação de vetores de doenças, melhorando a qualidade de vida nas comunidades.​

Por que o Brasil está Atrasado na Recuperação Energética de Resíduos?

Diversos fatores contribuem para o atraso do Brasil na adoção de tecnologias de recuperação energética:​

    • Deficiências na Infraestrutura de Gestão de Resíduos: A coleta seletiva e a segregação de resíduos ainda são práticas limitadas no país, dificultando a implementação de tecnologias que exigem materiais específicos, como a biodigestão anaeróbia.​
    • Barreiras Regulatórias e Legais: A ausência de um marco regulatório claro e de incentivos específicos para a recuperação energética desestimula investimentos no setor. A falta de políticas públicas que integrem a gestão de resíduos à geração de energia é um entrave significativo.​
    • Resistência Cultural e Desinformação: Há uma percepção negativa em relação às tecnologias de incineração, muitas vezes associadas, de forma equivocada, à poluição atmosférica. Essa desinformação gera resistência por parte da sociedade e de gestores públicos.​
    • Desafios Econômicos e de Financiamento: O alto custo inicial para a implantação de usinas de recuperação energética, aliado à falta de mecanismos de financiamento adequados, dificulta a viabilização desses projetos. Além disso, a competição com aterros sanitários, que possuem custos operacionais mais baixos, torna a recuperação energética menos atrativa economicamente.​

    Panorama Atual e Iniciativas em Desenvolvimento no Brasil

    Apesar dos desafios, algumas iniciativas sinalizam avanços na recuperação energética de resíduos no Brasil:​

    • Usina de Recuperação Energética de Barueri (URE Barueri): Prevista para iniciar operações em 2027, será a primeira usina desse tipo no país, com capacidade de 20 MW.​
    • Projetos em Leilões de Energia: Em leilões realizados em 2022, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) incluiu 19 projetos de resíduos sólidos urbanos, totalizando uma potência de 131 MW. Esses projetos estão localizados em São Paulo e no Rio de Janeiro, indicando um interesse crescente na área.​
    • Planos Nacionais e Investimentos: O Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares) prevê a implementação de 994 MW de potência instalada em usinas de recuperação energética até 2040. Estimativas apontam para um potencial de investimentos de aproximadamente R$ 500 bilhões no setor de biogás, biometano e recuperação energética de resíduos nos próximos anos.​

    Exemplos Internacionais Recentes de Recuperação Energética de Resíduos

    Vários países têm avançado significativamente na recuperação energética de resíduos, servindo como referência para o Brasil:​

    União Europeia: A UE estabeleceu metas ambiciosas para a gestão de resíduos. Até 2035, os Estados-membros devem garantir que no máximo 10% dos resíduos municipais sejam enviados para aterros sanitários, promovendo a reciclagem e a recuperação energética. Além disso, a UE pretende reduzir essa porcentagem para 1% até 2050 ou estabelecer metas específicas por habitante, como parte da transição para uma economia circular.​

    Alemanha: Entre os cinco países que mais geram lixo no mundo, a Alemanha recicla 32% dos resíduos urbanos, 46% são destinados à incineração com recuperação energética (waste-to-energy) e o restante é destinado à compostagem (22%). Desde 2005, somente resíduos inertes podem ser depositados em aterros.​

    Espanha: O país tem avançado na transição para uma indústria menos dependente de combustíveis fósseis, investindo em processos de biorrefinaria que utilizam resíduos orgânicos para gerar energia e biocombustíveis. Projetos como os da Cepsa e Natac, além de uma nova biofábrica em Zaragoza gerida pela Urbaser, exemplificam essa tendência.

    Austrália: A Austrália tem investido fortemente na recuperação energética como solução para reduzir a dependência de aterros sanitários e aumentar a participação de fontes renováveis em sua matriz energética. Segundo a ABREN (Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos), um dos projetos mais inovadores do país é a instalação da East Rockingham Waste to Energy, que deverá processar cerca de 300.000 toneladas de resíduos sólidos urbanos por ano, gerando 29 MW de eletricidade, o suficiente para abastecer 36.000 residências.

    Além disso, o país está implementando novas usinas de WTE em Melbourne e Sydney, impulsionando um plano nacional de transição energética que visa reduzir a destinação de resíduos em aterros sanitários para menos de 10% até 2030. Esse modelo segue a tendência observada na União Europeia, onde a legislação ambiental tem incentivado fortemente o uso da recuperação energética como uma alternativa sustentável.

    O Brasil poderia se inspirar nesses avanços e estruturar políticas semelhantes para reduzir a dependência de aterros sanitários, que atualmente recebem cerca de 60% dos resíduos sólidos urbanos.

    Saiba mais: Como Descarbonizar? O Caminho para um Futuro Energético Sustentável

    Perspectivas para a Recuperação Energética no Brasil

    O cenário brasileiro para a recuperação energética ainda está em fase inicial, mas algumas tendências indicam um caminho promissor:

    1. Regulamentação e Políticas Públicas
    A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), aprovada em 2010, trouxe diretrizes para o aproveitamento energético dos resíduos. No entanto, a implementação ainda caminha a passos lentos. Para destravar investimentos, o Brasil precisa de um marco regulatório sólido, similar ao da União Europeia, que estabeleça metas claras para a redução de aterros e a priorização da recuperação energética.

    Um avanço importante foi a criação do SINIR (Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão de Resíduos Sólidos), que monitora os dados de destinação de resíduos no país. Esse sistema pode servir como base para novas regulamentações e políticas de incentivo ao setor.

    2. Parcerias Público-Privadas (PPPs)
    A experiência internacional mostra que o setor privado tem papel crucial na viabilização de projetos de WTE. Na Alemanha e na França, por exemplo, a maioria das plantas são operadas por consórcios privados em parceria com governos locais. O Brasil precisa adotar esse modelo para atrair investimentos e garantir a implementação de novas usinas.

    Recentemente, algumas cidades brasileiras começaram a se movimentar nesse sentido. Em São Paulo, a Prefeitura discute um projeto de concessão para a construção da primeira usina de recuperação energética da cidade, que poderá gerar energia a partir de 2.000 toneladas diárias de resíduos.

    3. Expansão da Infraestrutura
    O investimento em infraestrutura é essencial para garantir a viabilidade da recuperação energética. O Brasil ainda enfrenta desafios na logística de coleta e segregação de resíduos, o que impacta diretamente a eficiência dos processos de WTE.

    Atualmente, a Eva Energia e a Gás Verde são algumas das empresas que investem na transformação de resíduos orgânicos em biogás e biometano, aproveitando resíduos provenientes de aterros sanitários. Esse modelo pode ser expandido para outras regiões do país.

    4. Conscientização e Educação Ambiental
    A aceitação pública da recuperação energética ainda enfrenta barreiras culturais no Brasil. Muitas pessoas associam incineração de resíduos à poluição atmosférica, desconhecendo que as novas tecnologias utilizadas na Europa e na Ásia possuem altos padrões de controle de emissões, sendo seguras e ambientalmente responsáveis.

    Campanhas educativas e projetos de sensibilização podem ajudar a desmistificar essas preocupações e incentivar a adoção de tecnologias de WTE no país.

    A geração de energia a partir de resíduos representa uma oportunidade única para o Brasil enfrentar dois grandes desafios simultaneamente: a crise na gestão de resíduos sólidos e a necessidade de diversificação da matriz energética. No entanto, para que isso se torne realidade, o país precisa avançar na regulamentação, atrair investimentos, modernizar sua infraestrutura e conscientizar a população sobre os benefícios da recuperação energética.

    Os exemplos de países como Alemanha, Austrália e Japão demonstram que a recuperação energética pode ser um pilar estratégico para reduzir a dependência de aterros sanitários, mitigar emissões de gases de efeito estufa e gerar eletricidade de maneira sustentável.

    Se o Brasil deseja alcançar um futuro mais sustentável e alinhado às melhores práticas globais, precisa agir agora. O atraso de 50 anos em relação a outras nações pode ser reduzido com políticas públicas eficientes, parcerias estratégicas e inovação tecnológica.

    O lixo, quando bem aproveitado, pode deixar de ser um problema e se transformar em um recurso valioso para a produção de energia limpa e renovável. A pergunta que fica é: quando o Brasil estará pronto para dar esse passo?