Em um cenário global cada vez mais pressionado pelas metas de descarbonização e pelos efeitos das mudanças climáticas, o Brasil registrou um avanço notável em sua matriz de transportes em 2024. De acordo com o estudo divulgado pelo Observatório de Conhecimento e Inovação em Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas (FGV), o uso de bioenergia evitou a emissão de 64,4 milhões de toneladas de CO₂ equivalente no ano passado.
O relatório anual, que monitora as emissões do setor de combustíveis leves e pesados no país, aponta que o protagonismo dos biocombustíveis — especialmente etanol e biodiesel — foi determinante para reduzir a intensidade de carbono da matriz energética nacional. Mesmo com o crescimento no consumo de combustíveis, a estratégia de substituição parcial por fontes renováveis mostrou resultados expressivos e coloca o Brasil como referência global no uso inteligente da bioenergia.
Emissões em queda, mesmo com maior consumo
O dado mais emblemático do relatório da FGV é a retração de 0,7% nas emissões de gases de efeito estufa (GEE) na matriz de combustíveis leves. Em 2024, essas emissões somaram 111,1 milhões de toneladas de CO₂ equivalente — um recuo que ocorre apesar do aumento de 3,6% no consumo total de combustíveis leves, como gasolina e etanol, no país.
Esse contraste positivo se explica pela maior participação dos biocombustíveis no consumo total, o que reduziu a “pegada de carbono” média dos veículos que operam no ciclo Otto. O resultado reforça que políticas públicas, incentivos e evolução tecnológica no setor sucroenergético estão convergindo para ganhos ambientais consistentes.
Etanol ganha força e responde por 41,1% do consumo da frota leve
O etanol foi o principal responsável pelo avanço da descarbonização no setor de transportes leves. Em 2024, o biocombustível respondeu por 41,1% de todo o consumo energético da frota do ciclo Otto (composta majoritariamente por veículos leves como carros e motos). Esse é o maior percentual registrado na última década.
A explicação está no aumento da oferta e na competitividade do etanol frente à gasolina. O Brasil produziu 36,83 bilhões de litros de etanol em 2024, superando em 4,4% o volume do ano anterior. Desse total, 7,7 bilhões de litros foram derivados do milho — um crescimento impressionante de 32,8%, segundo dados da União Nacional do Etanol de Milho (UNEM). Esse avanço fortalece a diversificação da base produtiva e reduz pressões sazonais da cana-de-açúcar sobre o mercado.
Além disso, o etanol hidratado foi mais competitivo em diversas regiões do país ao longo do ano, favorecendo sua adoção por consumidores que priorizam combustíveis mais baratos e sustentáveis.
Menor intensidade de carbono da história
A matriz de combustíveis leves do Brasil emitiu, em média, 62,6 gramas de CO₂ equivalente por megajoule (gCO₂eq/MJ) em 2024. Esse índice representa uma melhora de 4,2% na comparação com 2023, sendo o melhor resultado já registrado no monitoramento da FGV.
Estados com forte tradição no uso de etanol se destacaram. Mato Grosso apresentou a menor intensidade de carbono do país, com 48,2 gCO₂eq/MJ. Goiás (53,6) e São Paulo (53,9) completam o topo da lista, evidenciando o impacto positivo de políticas estaduais voltadas à mobilidade de baixa emissão.
Na outra ponta, estados com menor penetração de etanol na frota — como Roraima e Amapá — apresentaram intensidade de carbono acima de 85 gCO₂eq/MJ, mostrando que ainda há espaço para avanços regionais.
Biodiesel impulsiona descarbonização na frota pesada
No transporte de cargas e passageiros — fortemente dependente do diesel — o biodiesel também teve papel essencial na redução das emissões. Em 2024, a intensidade de carbono da matriz de combustíveis pesados recuou para 77,9 gCO₂eq/MJ, uma melhora de 1,8% em relação a 2023.
Isso se deve ao aumento na mistura obrigatória de biodiesel no diesel fóssil, que passou a ser de 14% (B14) em março de 2024, conforme determinação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Essa elevação do percentual impulsionou a demanda e fez com que as emissões evitadas saltassem para 20,4 milhões de toneladas de CO₂ equivalente — um aumento de 22,6% em relação ao ano anterior.
Com 59 usinas em operação e capacidade produtiva crescente, o Brasil consolidou-se como o terceiro maior produtor mundial de biodiesel, atrás apenas dos Estados Unidos e da Alemanha. A produção nacional superou os 9 bilhões de litros, um salto em relação aos 7,5 bilhões registrados em 2023, de acordo com a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove).
Brasil fortalece sua liderança na bioeconomia
O desempenho do setor de biocombustíveis em 2024 não apenas contribuiu para a mitigação das emissões de carbono, mas também reforçou o papel estratégico do Brasil na bioeconomia global. O país tem um dos sistemas mais avançados de produção, distribuição e consumo de biocombustíveis, com destaque para a integração logística e a infraestrutura de distribuição do etanol e do biodiesel.
Iniciativas como o RenovaBio — política nacional de biocombustíveis que estabelece metas de descarbonização para distribuidoras — seguem incentivando investimentos no setor e ampliando a competitividade da bioenergia brasileira.
O aumento no número de certificados de produção eficiente (CBIOs) emitidos em 2024 também foi expressivo. Mais de 45 milhões de CBIOs foram registrados no ano, segundo dados da ANP, representando créditos de carbono transacionáveis que valorizam práticas sustentáveis e atraem investidores internacionais.
Desafios e perspectivas
Apesar dos avanços, o estudo da FGV ressalta que a expansão da bioenergia enfrenta desafios estruturais. A oscilação dos preços da gasolina, a limitação de infraestrutura de recarga elétrica para veículos híbridos e a necessidade de maior comunicação com o consumidor são pontos de atenção.
No entanto, as perspectivas seguem otimistas. Projeções da EPE (Empresa de Pesquisa Energética) indicam que, até 2030, a participação dos biocombustíveis na matriz de transportes do Brasil poderá ultrapassar 45%, considerando cenários sustentáveis e incentivos consistentes.
Um futuro menos carbono, mais Brasil
O ano de 2024 entra para a história como um divisor de águas na trajetória da descarbonização dos transportes no Brasil. A robustez dos dados do estudo da FGV comprova que a bioenergia não é apenas uma alternativa, mas uma solução viável, eficiente e escalável.
A combinação de inovação, políticas públicas bem desenhadas e engajamento do setor produtivo está transformando a matriz energética nacional — e, ao fazer isso, projetando o Brasil como líder mundial na transição para um futuro de baixa emissão de carbono.